domingo, 16 de agosto de 2009

A força das palavras

As palavras são uma dádiva dos céus. Um milagre que como todos os milagres se perdem em explicações que nunca o serão. Desnudar a alma e mostrar o sangue vermelho forte que nos corre nas veias, obriga a acordar a coragem que vive dentro de nós, alimenta o melhor que o Homem possui. As palavras, quanto sentidas e correctamente expressas, têm movimento. Vomitam expressões capazes de tocar no fundo de um sentir que nem sempre quer mostrar o seu olhar. Todos os dias agradeço às palavras a forma como me purgam, tornado mais leve o meu existir, num esforço diário de criar azimutes capaz de me mostrar o caminho!

Carta a meu pai

És o farol da minha razão. Sempre o foste. Mostras-me, sem o saberes, a indelével fronteira entre a realidade e a loucura que abraço como forma de sentir e ser.
Bem formado, distraído e compreensivo, tens a alma de um cavaleiro de cariz quixotesco, apesar de nem a ti o admitires. Cresci a olhar-te com profundo orgulho e a querer tomar como meus os teus princípios.
Nunca fomos de grandes conversas. No entanto na tua força ainda hoje me sinto resguardado. Não adjectivas a vida, nem tão pouco a culpas de nada. És pragmático, curiosamente, de uma forma poética que parece não condizer contigo. Mas está-te na essência, por mais que o negues para ti.
Muitos acreditam conhecer-te. Poucos te conhecem. Para te conhecer foi-me necessário ler-te aos poucos, beber-te os pequenos detalhes, ouvir-te nos momentos de silêncio em que te sentes só. Foi preciso sentir-te, subtilmente, segundo após segundo, ano após ano. Afinal, compreender um homem cuja grandeza é muito maior do que ele próprio crê é uma tarefa hercúlea.
Nas qualidades que em mim reconheço leio o reflexo do seu rosto, das inúmeras falhas marcadas na personalidade que me cobre não encontro sombra da sua imagem. Fizeste o que podias e sabias para eu ser de outra cepa, mas as árvores nem sempre têm a qualidade das suas sementes, o seu formato e consistência depende em muito das chuvas e dos ventos que as brindaram enquanto cresciam. Muito mais gostaria de te dizer, infelizmente ou talvez não, há sentimentos que nunca foram baptizados pelo reino das palavras.
Não fiques triste, a vida pode vestir várias indumentárias, no entanto, despida é sempre igual. Começa com um grito e acaba com um esgar. E no espaço que me separa desses dois momentos, transporto sempre comigo o profundo amor que te tenho e um ímpar sentimento de gratidão por ser teu filho.

Razões

Não é de palavras que preciso,
nem de actos perdidos
por entre sarjetas do passado.
É de razões que tenho sede,
desenhadas nos sinais do caminho,
pistas à espera de serem descobertas
na invisibilidade da sombra
e na grandeza do seu sentido.

Sinto-me apanágio do nada,
soluço silencioso e esquecido.
Acreditar é tudo o que me resta,
ténue pavio em fim de vida,
num murmúrio pressentido
entre as palavras e os actos,
sem esquiva das razões procuradas.

Suicídio

Suicídio,
partir de vontade própria,
a serenidade da morte que nos fugiu da vida.

É raro o dia em que não me suicido
na sensibilidade dos meus ideais.
Quantas vezes estou de luto de mim,
velando a minha tola existência
na tristeza que doaram ao negro.

Cumpro o ritual entre o olhar e a roupa,
perdido no medo da morte me levar
e na paz de espírito de me entregar a ela.
A impossível necessidade de controlar o todo
espelha-se na dualidade que nos habita.

Pouco importa,
Hoje, amanhã,
daqui a muitos anos.
Partirei com toda a certeza,
Levado, levando-me.
Pouco importa, nem a mim farei falta.

Dores

Queria chegar mais longe,
Andar até mais não poder
Perder-me como um monge,
Por entre as entranhas do ser.

Verdade coberta de pó,
Gratidão ferida de morte,
Justiça caminhando só,
Amizade largada à sorte.

Na lucidez da dor a nascer
Percebo quão subtil é viver

Nada de nada

Sons. Sons quentes. Sons quase inaudíveis, perdidos na envolvente expressão de uma felicidade infantil. Momentos de um império de outros reis, onde a seda e o linho eram a marca que os distinguia das estátuas de mármore escondidas por entre o verde dos extensos jardins.
Histórias ouvidas ao serão, depois do repasto. Lareira apagada, recordada de tempos ainda mais idos, mais mágicos. Velas. Chama e calor. Murais de cristal e fé. Joelhos massacrados de vontade. Murmúrios de preces esquecidas, arrumadas por entre o amarelado das páginas fechadas.
Sons. Barulhos musicais. Vêm de longe em peregrinação, param e seguem. Na calçada ecoam com a força da simplicidade a que a felicidade obriga. A lareira então estava acesa e as labaredas de luz entravam alma adentro, enchiam o espaço que o tempo ocupou de escuridão. Sons. Quais sons afinal?

Intimidades

As rugas pareciam caminhos de um mapa de outrora, desenhavam destinos. Rios já secos. Antigos. Experiências incontáveis, recheadas de passado desaguavam em pequenos lagos de águas paradas por sensações profundamente vividas. Tempo de antes ainda presente. Momentos gastos em sorrisos, guardados numa gaveta melancólica, a terceira a contar de cima, a dos segredos revisitados, numa partilha quase romântica com os postais de uma existência completa, inteira, amarelados e marcados pelas traças.
Carregados de vida vivida, os dedos, dela e dele entrelaçavam-se pelos salientes nós da experiência, moviam-se com a subtileza de um amor que nunca havia de partir, num afago de indelével ternura. Pássaros de asas cansadas carregam no voar o orgulho de muitas travessias. As duas margens de um rio. Imagens simples de cores comuns. Relatos soltos de um todo vivido até ao tutano.
Depois da vida não há margens, é tudo água do rio.